Hoje, quem anda pela avenida Paulista, em São Paulo, depara-se com uma cena atípica: o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), projetado por Lina Bo Bardi, perdeu o seu vermelho característico. Removida, a tinta deu lugar ao cinza imponente do concreto cru.
Segundo a administração do museu, é uma mudança passageira devido ao processo de restauração do edifício, que foi iniciado em 22 de abril e, ainda, não tem data para terminar.
Trata-se da primeira vez que estruturas como pilares e vigas externos e laje de cobertura do vão livre são restauradas segundo critérios de preservação de patrimônio histórico.
Esse cuidado é de extrema importância, visto que, mais do que um reduto de arte e diversidade cultural, o MASP é um ícone da arquitetura paulistana e brasileira. Além disso, o prédio se tornou um símbolo para a democracia e liberdade no país, traços profetizados pela arquiteta ítalo-brasileira já no momento de sua concepção.
Conversamos com os biógrafos e pesquisadores da obra de Lina Bo Bardi para entender os bastidores desse projeto e por que o MASP se tornou essa grande potência para o imaginário afetivo de São Paulo.
Antecedentes
O MASP e a avenida Paulista são tão conectados que, hoje, praticamente não há como falar de um sem mencionar o outro. Mas você sabia que o primeiro prédio da instituição estava situado no centro de São Paulo, na rua Sete de Abril?
Assis Chateaubriand, um empresário e figura importante da imprensa brasileira, ambicionava criar no Brasil o primeiro grande museu de arte moderna. Motivado pela vontade, ele convidou o jornalista e marchand Pietro Maria Bardi para criar, juntos, o MASP.
Pietro era casado com Lina, uma jovem arquiteta italiana que, depois, viria a se naturalizar brasileira. Foi ela a encarregada de projetar a reforma dos interiores do Edifício Guilherme Guinle, que sediava os Diários Associados de Chateaubriand no centro de São Paulo. Neste endereço, em 2 de outubro de 1947, o MASP foi inaugurado.
“Lina adaptou o que era um prédio de escritórios para um museu na parte acima da entrada, que depois cresceu para dois andares. Mas, desde o início, a Lina foi a arquiteta do MASP”, conta Zeuler Lima, arquiteto, biógrafo de Lina Bo Bardi e professor associado da Washigton University, em Saint Louis, nos Estados Unidos.
Ali na rua Sete de Abril, o MASP operava não apenas como museu, mas também como espaço de docência de cursos livres e produção da revista Habitat, voltada à crítica de arte e arquitetura no Brasil.
Nesse contexto, Lina era mais do que a arquiteta do espaço: ela esteve envolvida em suas atividades editoriais e também lecionava para paulistanos e estrangeiros em São Paulo que fugiam da Europa devastada pela guerra.
Zeuler conta que nos seus primeiros 10 anos de história, o MASP esteve no epicentro de muitas controvérsias do ambiente cultural brasileiro. Uma delas era que, na criação da coleção atualmente exposta nos cavaletes de cristal, houve muita acusação infundada de que os quadros comprados por Pietro Maria Bardi eram falsos.
Essas acusações levaram Pietro a realizar mostras internacionais do acervo entre 1953 e 1957, da Europa aos Estados Unidos, a fim de legitimar as pinturas com colecionadores.
Segundo o biógrafo, em uma dessas viagens aos EUA, um galerista chamado Georges Wildenstein fez a denúncia de que Chatô não havia pago pelas obras que lhe vendeu – à época, o valor correspondia a mais de US$ 2 milhões (aproximadamente R$ 4.958.600, na cotação atual).
“Ele entrou com um mandado judicial, fazendo com que o Chateaubriand tivesse que pagar essas obras para que elas pudessem voltar ao Brasil. Na época, ele não tinha dinheiro, mas tinha poder”, diz Zeuler, que é autor das monografias Lina Bo Bardi (Yale University Press, 2013) e Lina Bo Bardi, Drawings (Princeton University Press e Fondació Joan Miró, 2018), entre outros livros.
O jornalista então apelou ao presidente Juscelino Kubitschek para transformar recursos da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil em doação pública a fim de salvar a coleção do MASP.
Não se sabe as condições exatas desse acordo, mas o fato é que Kubitschek realmente fez a doação e, como consequência, o museu foi obrigado a se desvincular dos Diários Associados. Hoje, o MASP é uma instituição privada sem fins lucrativos, que aluga o prédio localizado na avenida Paulista – este, por sua vez, pertence à Prefeitura de São Paulo. Foi aí que o museu começou a saga em busca de uma nova sede.
Mudança para a avenida Paulista
Na área onde hoje se localiza o MASP, havia o Belvedere Trianon, um ponto de encontro da elite paulistana e cenário para diferentes eventos da alta sociedade. Tratava-se de um parque público com uma estrutura que abrigava um salão de festas, um restaurante e um terraço cercado por pergolados com vista para o centro da cidade.
Nos anos 1940, porém, a localidade começou a perder o interesse exclusivo das elites paulistanas, e a Prefeitura passou a alugá-la para eventos populares. Já na década de 1950, o espaço passou a ser alvo de uma grande disputa.
“Primeiro, ele foi ocupado por um pavilhão provisório da primeira edição da Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, e logo em seguida passou a ser alvo de diferentes projetos”, conta o arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, conselheiro do Instituto Bardi e autor do livro Lina, uma biografia (Editora Todavia, 2021).
Organizada pela família Matarazzo, a bienal foi realizada no Museu de Arte Moderna (MAM-SP), em um pavilhão provisório no Belvedere Trianon. Quando a bienal chegou ao fim, tanto o pavilhão provisório quanto o prédio do salão de festas e do belvedere foram demolidos. Restou um espaço vazio, que se tornaria alvo de interesse por parte do MASP e do MAM-SP, cada instituição com a sua própria ideia de ocupação.
É importante dizer que essa rivalidade entre instituições e seus diretores se iniciou ainda no edifício da Sete de Abril, que, curiosamente, também abrigava o MAM-SP. A relação não amistosa envolveu críticas e provocações dos Bardi e apoiadores de Chateaubriand às iniciativas do MAM-SP, alfinetadas na revista Habitat e a competição pelo endereço cobiçado do Belvedere Trianon.
Em relação a este último, os primeiros esforços partiram dos Matarazzo, que ambicionavam instalar ali o Pavilhão das Artes projetado pelo arquiteto Affonso Reidy. Mas o MAM-SP abandonou a disputa em 1952, já que não havia obtido recursos financeiros para a construção do projeto.
Na biografia Lina Bo Bardi: O que eu queria era ter história (Companhia das Letras, 2021), Zeuler escreve: “Assim, o museu nunca chegou a ser construído, e o grupo MAM-Bienal voltou a sua atenção para a edificação de um complexo cultural e de lazer muito maior, em homenagem aos 400 anos da fundação de São Paulo: o parque Ibirapuera, cujas construções modernistas, projetadas por Oscar Niemeyer, incluíam um grande pavilhão que sediaria a Fundação Bienal”.
O pavilhão, inclusive, foi duramente criticado pelos Bardi, como afirma Zeuler, em um artigo da revista Habitat em 1953.
Diante de tais conjunturas, o casal entrou na cena com a ideia de criar no lugar a maior coleção de arte da América Latina. Chateaubriand e Pietro Maria Bardi então conseguiram convencer a administração pública a doar o terreno do belvedere para a construção do novo MASP.
A data dos primeiros desenhos de Lina para o MASP é um ponto de discordância entre os biógrafos – há quem diga que eles datam de 1957 e outros de 1959. Mas, segundo Francesco, uma reunião decisiva em 20 de janeiro de 1960 marcou o início das obras – que se iniciaram naquele ano, mas pararam em 1961, e só foram retomadas 4 anos depois, em meio à ditadura militar brasileira.
Por sua vez, a inauguração oficial do Museu na avenida Paulista ocorreu em 8 de novembro de 1968, mas serviu apenas “para inglês ver”, literalmente, pois o museu não estava totalmente pronto e adequado. Com a presença ilustre da rainha Elizabeth II, a abertura acontece em meio a problemas de infiltração.
“Tanto é que se inaugurou, abriu, a rainha viu e depois guardaram os quadros correndo, porque já se viu que, de início, havia ali problemas de impermeabilização”, conta Francesco. As obras prosseguem e, em 7 de abril de 1969, o MASP é aberto ao público geral.
Arquitetura da liberdade
Construir o MASP durante os anos de repressão no Brasil pode parecer um grande dilema, uma vez que solicitar fundos públicos era muito difícil para todos os arquitetos e todas as pessoas que tinham uma visão cultural no Brasil.
Mas Lina foi cautelosa em evitar que o edifício fosse associado ao poder público reacionário. No clássico desenho L’ombra della sera, de 1965, que retrata o vão livre do MASP ao anoitecer, a arquiteta inscreve “liberdade” – palavra que voltaria a usar para definir o seu projeto também em outras ocasiões.
Além disso, após o final da ditadura, ela rebateu as críticas sobre a audácia estrutural e estética do museu construído em meio àquele contexto social. “Lina respondeu claramente na imprensa, desde a inauguração do MASP, falando sobre as intenções de que o museu fosse aberto, pois era a instituição da liberdade, e não reacionária”, conta Zeuler.
Para a arquiteta, o MASP não poderia ser um monumento, já que projetos arquitetônicos de grandes dimensões costumam ser símbolos de poder sob governos reacionários. Ela, que cresceu na Itália fascista, buscava justamente o oposto: uma arquitetura que evocasse a liberdade artística, cultural e cívica.
Pode-se dizer que o objetivo foi alcançado. Atualmente, o MASP é o ponto de encontro para muitas manifestações políticas e culturais na capital paulista, mas também o lugar que acolhe a diversidade artística do país. Como bem resume Francesco, é um “palco para os problemas e as virtudes da cidade de São Paulo”.
Em seu ensaio A Arquitetura dos Intervalos, publicado pela revista Serrote em 2013, ele transcreve o que a própria Lina contava sobre os seus intuitos:
“Quando o músico e poeta americano John Cage veio a São Paulo, de passagem pela avenida Paulista, mandou parar o carro na frente do MASP, desceu e, andando de um lado para outro do belvedere, os braços levantados, gritou: ‘É a arquitetura da liberdade!’. Acostumada aos elogios pelo ‘maior vão livre do mundo, com carga permanente, coberto em plano’, achei que o julgamento do grande artista talvez estivesse conseguindo comunicar aquilo que queria dizer quando projetei o MASP: o museu era um ‘nada’, uma procura da liberdade, a eliminação de obstáculos, a capacidade de ser livre perante as coisas“.
É no MASP que ocorre feiras de antiguidades, performances, reuniões e diversas outras atividades que envolvem os cidadãos. O museu também é um abrigo para muita gente, inclusive para os moradores de rua que lá se estabelecem, procurando um descanso do sol e da chuva.
“Aquele vão é uma varanda em uma escala urbana e metropolitana, e não em escala doméstica”, comenta, ainda, o arquiteto Marcelo Carvalho Ferraz, que foi colaborador de Lina de 1977 a 1992, diretor do Instituto Bardi de 1992 a 2001 e é autor do livro Lina Bo Bardi (Romano Guerra, 1993).
Caixa de concreto flutuante
Quem se coloca à frente do MASP e observa aquela construção de concreto armado pode não entender como uma estrutura tão pesada aguenta existir sobre um vão livre tão extenso.
A resposta exata, segundo Marcelo, demandaria um curso de arquitetura de, no mínimo, seis meses. “Mas é uma questão técnica de engenharia. Há uma estrutura protendida – ou seja, tensionada para aumentar a resistência das vigas. Puxa-se os cabos de aço pelas duas laterais, enrijecendo as vigas, que acabam vencendo o vão”, explica ele.
Hoje, muito comum e usada em pontes e rodovias, essa técnica foi pioneira no MASP, que é um museu. Neste caso, o sistema é genuinamente brasileiro e próprio do engenheiro Figueiredo Ferraz, responsável pelos cálculos estruturais da obra.
Para entender melhor, no prédio há duas vigas embaixo e duas em cima. As anteriores contam com os cabos de aço que sustentam as vigas inferiores, posicionadas entre o primeiro e o segundo andar. É possível enxergá-la nos interiores do primeiro pavimento, especialmente no hall antes da sala fechada.
Mas, olhando tudo de fora, parece que o museu é suspenso apenas pelas vigas superiores. Na verdade, elas sustentam apenas o teto – são aquelas que atravessam a construção, fazendo a maior parte do trabalho e sustentando dois pisos simultaneamente.
“A laje debaixo é completamente suspensa por cabos, enquanto a outra está assentada sobre as duas vigas internas. É como uma mesa muito bem estruturada, porque há quatro vigas, ainda que as duas mais importantes não sejam vistas externamente, e toda a torção recompensada vai para a fundação”, explica Zeuler.
“Sempre foi vermelho”
Tratando-se de vigas, outra característica particular é que, no MASP, essas estruturas são ocas como túneis. Frente às intempéries como chuva de vento, por exemplo, elas permitiam que a água ali se alojasse e fosse absorvida pelo concreto, o que acabava resultando em infiltração e goteira nos ambientes.
Na primeira intervenção para remover o excesso de impermeabilização das estruturas, levantou-se a hipótese de que o problema estava nas vigas de concreto armado. “Não dá para dizer com certeza, porque talvez haja um certo exagero das pessoas envolvidas na época, mas se conta que furaram as vigas e dali jorrou água por mais de um dia”, diz Francesco.
Em outras palavras, as vigas estavam atuando como uma grande caixa d’água. Para resolver o problema e evitar o uso de verniz a fim de preservar a textura do concreto, a solução encontrada foi usar uma tinta espessa para impermeabilizar as estruturas.
Daí surge a cor vermelha que impera no MASP, na época desenvolvida pela Suvinil. Marcelo conta que, nesta reunião decisiva entre colaboradores da arquiteta e equipe de Figueiredo Ferraz, que ocorreu no início da década de 1990, Lina revelou que sempre quis usar o tom rubro no museu.
“Naquele momento se questionou ‘mas por que não pintaram antes?’. Ela disse que era porque em 1968, no auge da ditadura, a cor poderia parecer uma provocação [ao governo]”, explica.
Os presentes na conversa também chegaram a pensar que Lina fez referência ao projeto do Museu à Beira do Oceano, em São Vicente (SP), que nunca foi construído, mas cujos pórticos realmente haviam sido desenhados em vermelho.
“Lina retornou para a sala com um desenho que ela disse ter feito na década de 1960: o papel mostrava o Masp com a estrutura pintada em vermelho. complementou dizendo que não a tinham deixado fazer em 1968. Não dá para ter certeza quando Lina fez, de fato, esse desenho, mas está tudo bem. Isso faz parte da mitologia bonita que envolve essa personagem fascinante que é a Lina”, diz Francesco.
Processo de restauro
Voltamos agora ao início do texto, quando a tinta vermelha dá lugar à nudez do concreto armado. Essa é apenas uma das fases do processo de restauro do MASP, explica Miriam Elwing, arquiteta mestre em Arquitetura e Urbanismo e gerente de Projetos e Arquitetura da instituição.
As várias camadas de impermeabilização sobrepostas foram removidas e as patologias do concreto foram identificadas para a produção eficiente de um novo material que reproduza a textura, a cor e a paginação de formas do original.
A certeza é de que a cor vermelha voltará por duas razões: a primeira é que a pintura serve como barreira de proteção para as estruturas. A segunda é que ela faz parte do imaginário afetivo da cidade de São Paulo.
“Não ousaríamos mudar isso sem fazer antes uma consulta ampla e pública. Não temos justificativa para mudar algo que está gravado na memória coletiva da cidade; um referencial urbano importante. O MASP, no imaginário da população paulista, é vermelho – pouquíssimas pessoas se lembram desse edifício antes da pintura”, explica a arquiteta.
Não será, contudo, a mesma tinta usada nos anos 1990. Pesquisas extensivas e testes de laboratório e de campo foram feitos para desenvolver o material mais adequado e que resistisse a diferentes ações, como raios UV, vapor d’água e até mesmo pixação.
“Inclusive, um requisito muito importante é de que a tinta fosse removível. Temos que garantir que, por mais que não tenhamos a intenção de tirar a tinta agora, se, em algum momento houver o desejo de que o MASP volte à cor de concreto, será possível fazer isso”, afirma Miriam.
O novo sistema de pintura inclui um primer, uma pintura epóxi e, sobre ela, outra tinta resistente e flexível, à base de polisiloxano. Ou seja, atualizou-se a solução sem interferir na parte estética, pois a cor será a mesma. Mas, desta vez, o revestimento foi desenvolvido pela AkzoNobel, que o batizou de Interfine 878 Vermelho MASP.
“Em paralelo, acabamos de começar uma intervenção para recuperar a laje de cobertura do belvedere. Ainda estamos em uma fase de mobilização de obra, mas a primeira atividade é limpar isso e remover fuligem e sujidades”, diz Miriam.
Depois, será possível visualizar quais são os problemas da estrutura – fissuras, ferragens expostas, carbonatação, etc. – e onde se deve intervir.
Ainda não há previsão para o término da restauração. O que se sabe é que as vigas e três dos quatro pilares já tiveram a sua pintura removida. “Gostamos de ser conservadores e conhecer completamente o problema para então fazer um planejamento que considera os dados de realidade”, diz Miriam sobre a conclusão das obras.
No segundo semestre deste ano, o MASP deve inaugurar um novo edifício, chamado de Pietro Maria Bardi, em seu projeto de expansão. Ele ficará situado no prédio Dumont-Adams, localizado à direita do museu e construído na década de 1950. A ligação entre as duas estruturas será realizada por um túnel subterrâneo.
Publicação original: MASP: dos bastidores do projeto de Lina Bo Bardi à restauração em vigor | Arquitetura | Casa e Jardim (globo.com)